2010 - 2019. Uma sequência de linhas e colunas de losangos azuis e um círculo vermelho sobre eles.
Uma correspondência sobre nove anos, dois amigos e um jogo de videogame.

Victor #1 - 19/04

O fim e o começo

Dani,

Quando tento lembrar alguma coisa de 2010, uns retalhos velhos aparecem no bolso: o último dia na escola que frequentei desde o maternal; o gol não marcado do Lampard nas oitavas da Copa; o espaço de horas entre um amigo colocar um piercing na língua e tirá-lo por medo da mãe; o fato de camisa social e sapato virarem, do nada, artigos maneiros em festas de 15 anos; descobrir numa tarde que, no vestibular dali a dois anos, as respostas podiam vir em potências de 10, e ficar chocado por isso. Junto dessas lembranças específicas, de vez em quando costumam surgir outras mais ordinárias e sem contexto, migalinhas na fenda do piso que notamos por dois segundos, ignorando em seguida. De uma dessas, que de vez em quando reaparece com a mesma falta de sentido, me lembro daquele jeito esfumaçado de personagens com amnésia em filmes noir: enquanto o professor aponta no projetor, estou no fundo da sala escondendo o PSP numa complexa armação de mochila, mesa e livros didáticos, protegido pelo escuro, jogando o recém lançado Persona 3 Portable.

Acho que você não iria se interessar tanto por essa estorinha a ponto de perguntar o que exatamente eu fazia nas entranhas desse RPG japonês. Acho também, na improvável hipótese de que isso acontecesse, que você não entenderia nada se eu dissesse que, no fundo da sala, eu tentava fundir personas. Não vou entrar em detalhes agora, mas basta saber que nesse joguinho com personagens em estilo anime, você provavelmente demora umas 50 horas até terminar a história principal, e isso se não perder muito tempo fundindo personas – espécie de pokémons do inferno metidos a representações freudianas dos donos. O importante aqui, mais que entender como algum jogo de videogame pode exigir 50 horas de alguém, é saber que, naquela época, eu tinha muito tempo. Tempo o suficiente pra gastar numa aula inteira ao testar combinações em um videogame portátil, tudo isso até que as duas criaturas, que podiam ser arcanjos citados na Bíblia ou deuses indianos, se fundissem como planejado. Quando dava certo, era uma beleza. Até lá, uma trabalheira dos infernos.

Dessa memória específica, consigo acessar duas outras miudezas. A primeira é que eu até tinha receio que confiscassem meu PSP, me mandassem pra fora de sala ou até me suspendessem do colégio por alguns dias, como já tinha acontecido por outras razões, mas no ano seguinte eu iria pra uma nova escola em outra cidade, além de morar sozinho pela primeira vez. Isso provocava uma atitude adolescente ao melhor estilo “Superbad” de fim de ciclo, de se me pegarem aqui, foda-se. A outra era que eu tinha a certeza absoluta que Persona 3 era o game mais cool que eu já tinha jogado e que, claramente, valia a pena gastar aquelas horas a mais fundindo personas, como também valia a pena resetar a cada vez que alguma coisinha saísse errado. Não vou me alongar nos detalhes, apenas dizer que todo esse perfeccionismo funcionou da pior forma possível e hoje, nove anos depois daquele dia no fundo da sala, ainda tenho o mesmo save de Persona 3 no memory stick do PSP, com mais de 144 horas jogadas, e nunca terminei o jogo.

Dani, é óbvio dizer que muita coisa mudou de lá pra cá. Pensar em nós mesmos em 2010 é como pensar em outra dimensão e talvez nenhuma outra época represente tantas mudanças quanto o fim da adolescência e o começo da vida adulta. O que é mais clichê, dizer que já não temos tanto tempo, ou tanto saco pra coisas antigas? Dá no mesmo, e ninguém tem paciência pra esse tipo de lamentação nostálgica, por isso vamos direto às elucubrações que a gente tanto gosta: você já pensou que talvez os videogames sejam pra nós, que crescemos e fomos moldados nessa estética, a mais fiel marca de que somos outras pessoas desde a infância até hoje? Quer dizer, eu te conheço há quatro anos, não tenho ideia de como você era em 2010, mas desconfio que sua forma de se relacionar com os games - e pensar neles - mudou tanto quanto você mesmo nesses nove anos. Mais ainda, acredito que são poucos os objetos que nos definem melhor culturalmente quanto os videogames e talvez só eles representem tão bem essa passagem pra vida adulta, já que tiveram uma importância enorme pra nossa "descoberta estética", ou seja lá como queira chamar.

Não é bizarro encontrar alguém dizendo que aprendeu a falar inglês com videogames. No nosso caso, eu diria que aprendemos a nos emocionar com videogames e isso, mais que uma característica da nossa geração, é um molde eterno de como entendemos as coisas. Não sei se você também tem um jogo assim, mas a primeira vez que achei ter entendido o que significava "arte" foi com um videogame. Se o saturadíssimo Final Fantasy VII me fez passar mais de 100 horas controlando personagens sem expressões faciais numa época que todo mundo já tinha um Playstation 2 era porque eu tinha deixado algo escapar - sem dúvidas, a capacidade de me importar com uma estorinha a fundo, que encontrei naqueles bonequinhos de cabelo espetado. Descobri então que RPGs japoneses eram a única coisa que queria jogar. Depois disso, demorou mais alguns anos e umas 130 horas em Final Fantasy X, 60 em FF VIII, 40 em Chrono Trigger, outras 40 em FF VI, umas 50 em FFXII, 30 em Chrono Cross e FF IX, além de outras centenas em RPGs nunca terminados pra descobrir que era possível encontrar prazer estético fora dos games. No meu caso, cinema, música, literatura, jornalismo e outras coisas que foram substituindo esses jogos ao mesmo tempo em que a idade chegava. Não lembro a última vez que comecei e terminei um deles, só sei que Persona 3 foi o último a me interessar.

Estou escrevendo por um motivo que já te falei no telefone, mas que esmiúço agora. Nove anos depois de 2010, sinto que nunca mais vou começar e terminar um RPG, meu gênero preferido. Os motivos são aqueles mesmos, não tenho mais tempo, nem saco. Ainda assim, sinto que terminar meu save de Persona 3 seria uma boa forma de contemplar o tempo passado de uma ponta à outra, com as mudanças de percepção nesse período, dos games aos posicionamentos pessoais. Mais bizarro, acho que devo alguma coisa ao arquivo do save no memory stick, como se as coisas digitais e esquecidas, já meio mortas, pudessem te fazer um último pedido antes de partirem em definitivo. O jogo já tá perto do fim, mas só vou ter ânimo de chegar aos créditos se transformar essas últimas incursões em outra coisa. Essa outra coisa vão ser essas cartas enquanto jogo e Persona 3 Portable vai ser o último RPG que vou terminar na vida.

Não sei se vai ser legal. Abri o jogo algumas vezes nesses anos e lembro de achar a estética dos JRPGs viciada demais. Ainda assim, acho que P3P é um desses joguinhos cheios de bons insights sobre cultura e videogames, e que algo interessante pode sair daí. Você que se orgulha de dizer que nunca zerou um mísero FFzinho, vai ter saco?

Um abraço do,

Victor.

19 de abril de 2019.

Daniel #1 - 22/04

Besta de fogo

Victor,

Salve, meu amigo. Como andam as coisas em Catalão? Espero que tenha passado bem a Páscoa. Te respondo do trabalho, em um interminável plantão de seis dias. Ousaria dizer que é tanto tempo que poderia ser chamado de festival trabalhista. Ou, de outra maneira, que daria tempo de zerar um rpg japonês. Aproveito a constatação para falar do que importa.

Acho que todos nós, que tomavam um pescotapa vez ou outra, têm memórias assim. Esses jogos eram a abdicação de uma realidade um tanto incômoda em favor desses mundinhos virtuais animados. Era uma opção interessante e sem dúvida moldou parte do nosso caráter e visão de mundo. É uma pena que não pudéssemos ver que essa mesma cultura que nos acolheu eventualmente regurgitaria um movimento de homens extremamente ressentidos; com o mundo, com a política, com as mulheres e principalmente consigo mesmo. Demos sorte, Victor. Escapamos por pouco.

E já que escapamos, acho que vale me permitir o luxo de olhar para esses momentos como se fossem inócuos, como toda lembrança infantil merece ser.

Assim como você, tenho um save que me acompanha há muitos anos. E há mais tempo do que o seu de Persona, pois o tenho desde 2003. É minha primeira campanha de Pokemon Ruby, onde comecei com um Mudkip chamado "Mud" e capturei um Groudon, aptamente chamado de "FireBeast". Para quem não está familiarizado com essa série de jogos — existe alguém? —, nela você assume o papel de um treinador de criaturas de bolso, devendo capturá-las e treiná-las para então se sagrar o mestre da rinha animal. Comecei a jogar na versão Red, no final dos anos 90, e nunca parei. Recentemente zerei a versão Sun, mas não com o mesmo ímpeto de anos. Foram alguns anos para fechar o jogo, e sinto que meus dias encarando 40h de jornada para enfrentar a Elite dos 4 estão acabando. Mas isso fica para depois.

Falo isso porque Pokemon pode ser importante nessa correspondência. Como você bem pontuou, eu não jogo RPGs japoneses. Com a exceção de Pokemon, que por algum motivo nunca associei ao gênero. Talvez essa tenha sido a grande sacada de marketing da Nintendo? Criar um jogo tradicionalmente japonês mas que pode ser facilmente aceito em qualquer buraco do mundo? Sei lá.

Sei que até hoje jogo Pokemon, e comigo carrego "Mud", "FireBeast" e uns tantos outros daquele save de 2003. Através de muita paciência, gambiarras e apoio institucional da Nintendo pude transferi-los por cabos, wifi e os anos. De Rubi para Esmeralda, então para Diamante, Platina, Black, Y e, finalmente, Sun. São um dos resquícios da minha infância a que me apego, e temo por eles sempre. Não é fácil que um punhado de bits sobreviva 15 anos. Penso se a hora deles está chegando.

"FireBeast", inclusive, é o protagonista de um momento que considero chave na formação da minha personalidade. Devia ter uns oito ou nove anos, e estava sentado jogando gameboy na sala de casa quando o interfone tocou. Era um menino que havia conhecido uns dias antes. Ele queria me chamar para descer e andar de skate. E, naquele momento, eu estava na reta final da campanha de Pokemon Ruby. Havia acabado de adentrar pela Caverna da Origem, em Sootopolis, para batalhar contra um pokémon lendário. Baseado no behemot bíblico, aquela criatura gigantesca ameaçava transformar o mundo num grande deserto, instado pelos planos maquiavélicos da equipe Magma. Cabia a mim, uma criança tanto no virtual quanto real, e meu parceiro "Mud" acabarmos com esse imbróglio. Foi uma batalha difícil, e eu lutava arduamente para que Groudon entrasse numa pokébola.

Fiquei entre a cruz e a espada. Não podia desligar o portátil sem perder o progresso de cerca de uma hora. Por outro lado, aquela talvez fosse a única oportunidade que eu tinha tido até então de fazer um amigo na minha vizinhança. Eu era uma criança um tanto sozinha, e tinha bastante dificuldade de me dar bem com os moleques do prédio. Suei frio. Sabia que a decisão certa era descer; que largar o game de lado tranquilizaria meus pais. Só que eu sempre fui um covarde, Victor. Tenho um medo profundo de me meter em situações que não sei como podem rolar, e aquela era uma dessas. E se ele me achasse chato? Bobo? Crianção? Desengonçado? Nenhum futuro mais sociável me faria arriscar uma humilhação. Não desci.

Ali capturei o Groundon, hoje "FireBeast". E nunca aprendi a andar de skate — deve ser ótimo. De consolo, fica a certeza de que eu não seria amigo daquele garoto até hoje, mas meu pokemon me acompanha desde então. Imagina se eu perco ele?

Falei, falei e não disse nada. No fim, não entendo bem minha ojeriza aos demais rpgs japoneses, ainda mais com a importância que um deles tem na minha vida. Jogo e joguei muito, mas sempre dei prioridade aos games de estratégia e simulação, que tendem a consumir tantas horas quanto. Nem ouso pensar em quantos dias passei vidrado no monitor montando cidades em Sim City 4 ou perdendo batalhas em Age of Empires III.  

Assim como você, abdiquei desse hábito. Hoje tento me limitar quanto à duração de jogos. Nada que dure muito. Se for excepcional, chego às quarenta horas já chorando sangue. Também nunca mais devo gastar centenas de horas em um game, por mais que fique babando no lançamento de cada expansão nova de Europa Universalis ou do último Football Manager.

Isso tudo para explicar que entendo a dimensão dessa sua jornada. É uma despedida importante, uma volta olímpica percorrendo uma marca da sua (e nossa) juventude. Eu provavelmente não terei experiência similar, e por isso aguardo ansiosamente os seus relatos de viagem nesse mundico digital que une o inferno e o ensino médio japonês. Me mantenha a par, por favor.

Um abraço para você e sua família,

Daniel.

Victor #2 - 24/04

356kb ou Subindo a torre infinita

Dani,

No dia que te mandei aquela carta fez uma lua cheia de western, enorme, amarela, agressiva de tão pitoresca. Entrei num desses loteamentos desertos e sem casas nas bordas da cidade, onde postes de iluminação são raridade, e fiquei assim parado no meio do nada enquanto passava a limpo aquela admiração infantil pelos 600 mil quilômetros entre ela e nós. Nunca vi lua maior, mais clara e amarela, era óbvio e era assustador. Não pude deixar de fazer a associação mais idiota possível, a de que nós começamos essa correspondência e, eu, a cavucar Persona 3 Portable outra vez, numa boa hora: no jogo, marcado pelas fases desse nosso satélite, algo terrível acontece em todas as noites de lua cheia.

Assim deduzi, também do jeito mais idiota possível, que se eu tinha de retomar o P3P como o último RPG da vida, seria mesmo nesse abril de 2019. Comecei a jogar pouco tempo depois, mas antes de entrar nesse mérito, uma palavra sobre a besta-fera.

Fiquei pensando no seu amontoado de bits (FireBeast), que imagino ser um Groudon bonitão e muito querido, do tipo que você faria uns afagos na carapaça se pudesse. Também pensei que você deve se sentir inteiramente à vontade, e até mais tranquilo, quando ouve o grunhido desse monstro saindo da pokébola depois de tantos anos consecutivos (não exatamente no nível de um Entei dizendo que tá tudo bem agora, mas, ainda assim, muito tranquilo). Do seu rolê de skate que nunca foi, tirei duas conclusões e uma explicação, as três coisas nada rocambolescas, você não repare. A primeira conclusão é que nós dois gostamos de coisas velhas medidas em kilobytes, ou exatos 356kb para o save de P3P. A segunda é que não nos arrependemos do que essas companhias espectrais, curtidas em telinhas de bolso, proporcionaram ou deixaram de proporcionar. E a explicação só pode ser uma: a de que é tudo culpa do play time e, principalmente, do tempo em que não jogamos coisa nenhuma.

Não há como passar tanto tempo num joguinho sem criar alguma empatia por ele, muito menos quando somos pré-adolescentes e inventamos de jogar esses malditos RPGs. Somando todos esses pokémons que você jogou, só consigo imaginar as milhares de vezes que seu FireBeast soltou o mesmo berro infernal ao começar uma batalha - ficar alheio a isso, quanto mais depois de ter recusado um rolê pra poder capturá-lo, é apenas cruel. Em segundo lugar, não é exagero nenhum dizer que a criatura só tem esse significado especial pra você porque foi possível reencontrá-lo em diferentes épocas da vida. É esse tempo não jogado, esses intervalos entre uma geração e outra da maior franquia do mundo, que realmente fez a mágica. Já pensou que sem graça seria se tivesse zerado todos os pokémons de uma vez? Talvez até andar de skate fosse preferível.

Dani, você trocou uma potencial amizade sobre rodinhas de silicone por outra mantida a baterias por anos, portáteis e gerações de pokémons diferentes. Cruzar essas barreiras temporais não é pra qualquer menino querendo amizade, nem pra qualquer hobby que tenhamos. Entendo a tal covardia que você fala. Há coragem em pintá-la assim e mais ainda em reconhecer que a companhia de FireBeast sempre faria a potencial amizade do garotinho arder em chamas ou rachar em terremotos. Quando digo que videogames nos moldaram, falo exatamente desse seu mito fundador. Se serve de consolo, aqui vai mais uma dessas suposições estranhas de que gostamos, vinda do mesmo lugar que nos faz sentir ternura por saves antigos: não consigo desconsiderar que todas essas situações em que não aparecemos, não fizemos ou não nos disponibilizamos porque jogávamos qualquer coisa, convites recusados e ocasiões perdidas, se somam ao apreço que temos por esses bits. É como se todo o prazer que você teria por 50 minutos tentando dar ollies com essa criança também estivesse, de algum jeito, no seu FireBeast até hoje.

Nunca percebeu? Fica claríssimo assim que carregamos um save antigo, o que me embica de volta pra P3P e o início dessa última viagem. Foi você que disse estar ansioso, não venha me culpar depois.

Liguei o PSP na noite do dia 21/04. "Sony Computer Entertainment", apareceu na tela, com aquele som de canal do tempo. O portátil me pediu pra colocar a data e, como pré-definição, sugere algo nos anos 2000. Acertei os dados e fui até aquele diretório mágico do memory stick onde a ISO dos jogos baixados via torrent apareciam. P3P estava lá, firme e forte. Cliquei e o logo do videogame apareceu, senha pro início da brincadeira. A apresentação de P3P pode ser vista tanto com a tela virada pra cima, quanto pra baixo, é uma das features dessa versão portátil. Lançado originalmente pra Playstation 2 em 2006 no Japão, o port tem como uma das principais diferenças a opção de protagonista mulher. Tela pra cima, apresentação destacando o rapaz; tela pra baixo, a menina. O truque é ser tudo meio espelhado, num jogo que curte essas metáforas.

Me lembro de poucas telas de "press start button", mas a de P3P é memorável por excelência: azul, piano jazz-café-midnight-hour e a lua cheia sobre o rosto vazado dos protagonistas. Meu save não tinha 144 horas, como eu tinha dito antes, mas exatamente 145 e meia. Carrego o jogo e apareço direto na Tartarus, a torre onde toda a ação do game, sempre de noite, acontece. Não lembro de quase nada da história de P3P, só o básico, e a essa altura não vou me esforçar para lembrar, muito menos te encher o saco com isso, então vamos ao fundamental.

Você é um aluno de ensino médio que vai morar sozinho em um dormitório estudantil de Iwatodai, cidade fictícia na costa do Japão. Desde que chega lá, quando bate a meia-noite, você percebe que seu relógio para e o espaço/tempo muda: é a tal dark hour, uma hora exata no relógio que apenas pessoas especiais podem cruzar sem ser transformadas em caixões, literalmente. Na dark hour, seres estranhos aparecem, os shadows, dentro de uma torre imensa, a Tartarus, exatamente onde originalmente é sua escola. Toda noite de lua cheia, um shadow poderoso aparece fora da Tartarus destruindo alguma coisa. Você descobre, numa situação extrema, que durante a dark hour é possível invocar esses pokémons dos infernos, os personas, e que você é capaz disso junto de seus colegas de dormitório. A partir daí, se me lembro bem, sua missão é descobrir, explorando os andares da Tartarus, de onde veio a tal dark hour e o que fazer pra acabar com ela, de modo a impedir que os shadows causem problemas. Ao fim da dark hour, a Tartarus some e nenhum dos humanos comuns se lembra de nada para o dia seguinte, em que ela voltará a aparecer às 00h.

Achou original? Não é muito, mas até funciona dividindo bem o jogo, porque enquanto você não está na dark hour salvando o mundo, está na escola de manhã e Persona 3 vira uma espécie de visual novel, esses joguinhos de texto em que sua missão é interagir, fazer amizades, responder perguntas e ir a dates com outros personagens. Não vou me alongar mais ainda explicando esses detalhes, nem detalhando essa primeira sessão boba de jogo, mas apenas dizer que carreguei o save, apareci na Tartarus em 21/11/2009 e meu nome é Natsue Urahana, uma menina. Checando, vi que já estou no andar 211 e resolvi dar uma volta, matar uns shadows, só pra não perder a prática. No nível 72 que estou, os inimigos são muito fracos e não há desafio nenhum nisso - não subo mais porque a torre é organizada em blocos que só são liberados ao fim de cada lua cheia. Me intriga mais o fato do melhor equipamento que minha personagem pode usar - o que garante mais defesa se equipado - é uma roupa de empregada. Também vi que uma das quests abertas é "limpar o banheiro".

Nas quase duas horas que fiquei jogando, entre evoluir alguns níveis na Tartarus e fundir alguns personas - voltando ao fundo da sala de aula - o que aconteceu de mais importante foi a morte de uma personagem secundária, par romântico de um colega seu de dormitório, o Junpei. Há uma cena dramática no dia 22/11 em que a moça com roupas de boneca, tal de Chidori, usa seu persona pra trocar sua vida pela de Junpei, baleado por outros persona-users do mal. Na minha cabeça só ficou o que ela disse antes de morrer: "what I fear must isn't death. It's attachment." De resto, no outro dia também conversei com o cachorro do meu dormitório, o também persona-user Koromaru, em um evento que me garantiu o status de "amizade máxima" com o cãozinho.

Dani, não quero escrever mais do que já escrevi por hora, pra não te encher muito o saco, apenas dizer que, verde como a dark hour, as 145h30m de jogo passaram pras 147h13m cheias daquela nostalgia meio inútil, e que 2010 nunca esteve tão longe por enquanto.

Um abraço do,

Victor.

24 de abril de 2019.

Daniel #2 - 29/04

A lua me disse

Victor,

Vou te falar, a lua também estava de matar por aqui. Enorme. Não diria que me deu medo, mas seria uma boa lua para uma história cabulosa dessas que, pelo visto, acontecem em Persona. Não sou muito fã, inclusive, de coisas trevosas, do mal, sombrias, amedrontantes e tal, por isso mesmo evito uma pá de jogos. Não foi o caso com o Persona, mas me veio a cabeça enquanto lia tua carta.

Acho que você acertou: a tela sempre me atraiu. Não a tela do celular, ou do computador do trabalho. Essa me repele, muita informação junta de uma vez, a cabeça pulando de um lado pro outro. Fico meio mortificado. Gosto mesmo da telinha do gameboy ou de um console de videogame, onde eu posso mergulhar por algumas horas sem interrupção. Ando jogando menos, principalmente pokemon, mas admito que tenho retornado frequentemente ao jogo para ficar olhando as criaturas que colecionei. Coisa de 20, 25 minutos. Tiro um da minha equipe e coloco outro no lugar, fico tentando lembrar de batalhas que lutei com eles, tudo meio efêmero mesmo, mas que me acalma bastante. FireBeast, inclusive, está escrito numa grafia menos elegante. É toda em caps "FIRE BEAST" assim. Achava que todo pokemon tinha nome em maiúscula. O nome do meu personagem era sempre DANIEL também.

É isso, amamos os bits. Mesmo com a idade vindo, sabendo bastante bem quais são as mecânicas e sistemas por trás desses jogos, as estratégias meio canalhas e vazias de significado feitas para nos prender nos jogos por mais do que 5h ou 10h — tempo mais do que suficiente para aproveitar basicamente qualquer jogo —, não consigo largar o osso. Agora mesmo estou com umas 25h em uma jogatina de Assassins Creed Odyssey, onde é tudo bastante artificial, meio besta e repetitivo. Sabendo disso tudo, não abro mão de ficar passeando pela Grécia Antiga imaginada, tiro fotos a torto e direito — já te mostrei? não são as do Egito — e conversar com versões completamente descaracterizadas de Sócrates, Heródoto e Péricles.

Você gosta bastante dessa sonoridade Buda Café, né? Aquela coisa de jazz para ouvir dirigindo um escalade na madrugada. Talvez esteja aí a razão disso?

Essa sua descrição me fez pensar em dois temas muito recorrentes na cultura pop japonesa, em ordem de prevalência: o ensino médio e o imaginário fantástico do cristianismo.

O primeiro caso deve ser óbvio até para quem não liga muito para anime, mangá e derivados. Parece que todo protagonista está no ensino médio ou em idade escolar. Entendo que seja uma escolha meio de marketing, sendo todos eles shounen — histórias para garotos — e obcecados em conquistar esse público alvo. Mas por que os heróis dos quadrinhos americanos não são todos adolescentes? E os dos BD franceses? Chuto, mas aí é chutômetro, que o colegial é ainda mais marcante para os japoneses do que para nós. Deve ter uma nostalgia braba envolvida nisso tudo. Eu sei que sinto falta da simplicidade da escola, e imagino que fosse sentir mais ainda caso vivesse em uma sociedade tão obcecada com o peso da vida adulta, do trabalho ininterrupto, de tantas regras sociais.

Com os símbolos cristão, a coisa fica mais nebulosa. Não é tão evidente, mas de cabeça me vêm alguns exemplos: Devilman, Evangelion, Hellsing, Trigun, Devil May Cry, a série Souls e basicamente qualquer RPG que envolva uma invocação de anjos e demônios. Até Persona, nesse caso. Olha, até pokemon entra nessa conta, com o Groundon e seu "colega" Kyogre sendo, respectivamente, inspirados no Beemote e Leviatã, que são monstros bíblicos. Me fascina um pouco, já que o cristianismo nunca foi lá tão popular por lá. E por isso mesmo permite a eles uma liberdade e distanciamento que não seria possível aqui, tratando esses elementos fantásticos como mitologia, assim como nos permitimos fazer com outras religiões distantes. Porra, imagina aquele mangá de Jesus Cristo e Buda dividindo um apê no Brasil? Impossível, né?

Perdão pela digressão. Espero saber mais logo sobre Natsue e o que você vai encontrar no fim dessa sucessão de luas cheias. Talvez o sete peles em carne e pixels? Também não quero me alongar nessa história da roupa de maid, que é uma das muitas razões pelas quais tenho me afastado de desenhos japoneses com o passar dos anos. Sei que vocês já têm amizade máxima, mas mande um abraço ou afago no Koromaru por mim. E o que seria esse attachment da frase? Apego ao quê?

Por fim, deixo uma dúvida no ar: como seria a tradução de dark hour para o português? Amaria se fosse hora da bruxa, ou até mesmo hora morta. Mas sinto que teríamos algo como "hora da escuridão". É triste imaginar isso, mas adoro confabular quais seriam as traduções das coisas. Você também gosta?

É isso meu amigo. Sinto sua falta. Como disse o Rubem, ultimamente tem passado muitos anos.

Um forte abraço,

Daniel

Victor #3 - 30/04

A hora da bruxa

Dani,

Não arrisco dizer como ficaria a tradução de dark hour num Persona 3 pt-br, mas não restam dúvidas de que hora da bruxa seria a melhor de todas. A solução é tão boa que me pergunto agora se o Drummond - que tem a mesma bruxa solta num poema que você adora - não poderia até ser citado, nessa versão tupiniquim, durante as aulas que o protagonista do jogo deve ir, como acontece com outros poetas japoneses e filósofos clássicos — inclusive o seu Sócrates descaracterizado. Sem qualquer medo do ridículo, arrisco ainda dizer que se Persona 3 não acontecesse em Iwatodai, mas Nesta cidade do Rio / De dois milhões de habitantes, a torre da Central, se não desse uma Tartarus ainda melhor, daria outra mais facilmente localizada pra nós.

Não entenda como ofensa, mas se um nome da envergadura de FIRE BEAST não está em maiúsculas, ou é porque tem alguma coisa errada, ou o Groudon em questão é menos afeito às rinhas de galo da maior franquia do mundo. Não sei se posso dizer a mesma coisa de DANIEL, que escrito normal já parece um nome universalmente aceitável para um treinador pokémon. Aposto que os dois escritos em caixa alta assim deviam meter medo nos seus adversários de 13 anos - aliás, você também adotava a tática de botar um pokémon com o nome de outro, pra confundir os amigos? Nessa altura do cerrado goiano, era quase regra.

Já que o assunto é nome, vou te contar como por que escolhi jogar P3P com a protagonista mulher e por qual motivo ela se chama Natsue Urahana e não, sei lá, Maria Thereza, Ana Luiza, ou alguma outra moça da minha turma na época. O negócio é que antes de começar a versão portátil de Persona 3, eu já tinha jogado, em 2008 ou 2009, um pouco da original, de Playstation 2. Meu save era ruim, eu não conhecia as mecânicas direito e logo enchi o saco (deu tempo até de jogar um pouco de Persona 4 depois disso, também).

Quando saiu P3P, no entanto, decidi largar os outros jogos e pegar firme nesse, que agora tinha a opção 100% inédita de controlar uma personagem mulher, com algumas alterações na história. Como já sabia como eram as coisas com o protagonista, resolvi ir com a moça. Mas já que a coisa ia ser séria dessa vez, eu também precisava de um nome à altura que ao menos soasse japonês, e não um nick genérico. Foi aí que pensei em todas as palavras japoneses que já tinha ouvido falar e que, juntas, podiam soar bem: eu sabia que "natsu" significava "verão" pelo nome de um personagem de mangá; que "e" tinha alguma coisa a ver com "desenho" porque uma professora tinha dito; jurava que "ura" era "ao contrário" e "hana" era "flor". Minha "Desenho-do-verão Rosa-ao-contrário" estava prontíssima pra ir ao colegial batizada semi-aleatoriamente, mas, ainda assim, batizada em japonês.

Você tocou o sino falando em Japão. P3P é um desses joguinhos tão representativos do entretenimento desse país que podemos, inclusive, brincar com isso. Vou listar os personagens a seguir, todos amigos no seu dormitório e também persona-users, com seus determinados tipos ao lado. Assim você já fica sabendo quem é quem quando eu falar neles.

Você – Protagonista misterioso que não tem falas, família, origens ou motivos muito claros pra estar ali. Ainda assim decidem que você é o líder.

Junpei – Amigo falastrão e alívio cômico, dos primeiros a aparecer. Já que você não tem falas, ele preenche o espaço. Todo Persona tem um desses.

Yukari – Das mas originais, mas ainda assim genérica em cortar a onda do Junpei/ser bravinha.

Mitsuro – Dominatrix, sua veterana do 3° ano, ricaça e chiquérrima. Tem aquela voz mais grossa desse tipo de personagem.

Akihiko – O veterano que as meninas adoram e querem ser notadas por. Bom nos esportes, inteligente, meio bad boy.

Fuuka – Adolescente indefesa, fofinha, cara de criança, parece que vai quebrar. Ela não luta, só orienta a equipe.

Aigis – Menina-robô construída pra destruir shadows. Tem metralhadoras no braço e fa-la mei-o as-sim, erradinho.

Shinjiro – Delinquente bonitão e cool. Sobretudo, gorro e botas. Dá porrada com a mão no bolso.Ken - Criança (criança mesmo) inocente e meio triste, mas destemida. Quer sempre dar o melhor e se esforçar.

Koromaru – Mascote da equipe. Fofo na maior parte do tempo, mas raivoso/forte quando o alvo são seus amigos.

Ter ligado o PSP depois de nove anos querendo terminar P3P e reencontrar esses personagens é talvez a constatação maior de que as coisas mudaram. Todos são muito bem dublados, têm a personalidade bem definida e fazem sentido dentro do tal universo, mas parecem viciados, o que vai de encontro ao que você disse sobre ensino médio. Tenho a impressão que a cultura japonesa enxerga o ensino médio, guardadas as proporções, como nós enxergamos a universidade no ocidente. Não que eles façam festas tipo american pie, mas consideram que estes serão os melhores momentos antes das obrigações da vida adulta. Creio que a quantidade enorme de histórias com esse pano de fundo vêm por isso e, é claro, pelo público alvo. E, sendo uma história de ensino médio no Japão, você já consegue adivinhar umas coisinhas. Mas o que fazer quando você percebe que seus ex-heróis preferidos são robôs que só falam a mesma coisa?

Lembro agora o quanto achava a vida social do protagonista em P3P o máximo. Ele morava sem os pais num prédio com os parceiros, dava rolês sozinhos de noite, tinha vários amigos maneiros, dates, eventos e um senso forte de independência. Tudo isso no segundo ano do ensino médio, pra onde eu iria no ano seguinte. Era exatamente o que eu queria e o que mal podia esperar pra ter. Hoje, tendo feito tudo isso e ido além, digo sem dúvidas que, sim, foi legal - e em vários momentos me lembrava dessa comparação com o protagonista de Persona 3. Em nenhum deles, no entanto, me lembro de fantasiar um futuro tão artificialmente agradável, compartimentado e excitante quanto o que imaginava pra mim a partir do jogo. Talvez seja por isso que os japoneses pensem com tanto amor a adolescência: porque é quando menos temos vergonha de considerar futuros artificiosos. Por acaso você adolescente também era esse tipo de otário?

Quanto ao cristianismo, acho que, nas produções JP, ele funciona como pano de fundo na maioria das vezes, assim como mitologia nórdica, alquimistas, antiguidade e outros temas, sem passar muito disso. Pra gente no ocidente, brincar de exorcismo sempre vai ser diferente. De todo jeito, espero que o quadrinho de Jesus e Buda rachando um apartamento chegue no Brasil cheio de gírias.

Agora sobre o meu joguinho: numa noite de lua cheia descobrimos que o mundo vai acabar por um ser fundamental destruidor de tudo e criador da morte, tal de Nyx. Os shadows vêm dele e você tinha um selado no corpo, que assume forma humana amigável e conta desse Nyx aí. Aparentemente não há saída, nem como lutar com esse bicho, apenas aceitar o apocalipse dali umas semanas. Gosto desse clima de "não adianta", ao menos é preferível, nesses jogos, ao tradicional "vamos lá", e Persona 3 tem dessa atmosfera melancólica que pode funcionar de vez em quando. O "attachment" que você perguntou era sobre se ligar afetuosamente a outras pessoas - nesse sentido já acho dramalhão demais.

Mais uma vez não dou muita bola pra história, prefiro dar umas voltas pela cidade. Num dos eventos sociáveis durante o dia comum, saio pra comer lámem com Mitsuro. Ela, chique demais, diz que é a primeira vez "num lugar desses" e pergunta o jeito certo de comer. Tenho três opções e esqueci duas delas, só lembro a escolhida: fazer barulho quando suga a massa. Ela fica assustada, mas faz mesmo assim e acha uma delícia. Perdoada? Nosso "nível de amizade" sobe um ponto ao fim desse evento.

Depois de ficar sabendo do Nyx, seus amigos decidem parar de ir à Tartarus por um tempo. Você já sentiu que o jogo está te fazendo de idiota? Porque sem Tartarus, era essa a sensação. Passei os dias voando até que um mini evento - seus amigos decidem se matam o tal shadow amigável que fazia parte de você, o que atrasaria a vinda do tal Nyx - te devolve a torre. Achando que o bloco superior iria estar desbloqueado, como depois de toda lua cheia, dou de cara na parede. Agora é continuar avançando os dias sem muito critério até algo acontecer, imagino (essa frase é bastante apropriada pra umas situações, não?)

É isso, também ando com saudades e com vontade de, sem cerimônias, comer um lámem. Aqui são 00h53, hora da bruxa. Meus dois milhões de habitantes não são nem cem mil, mas ainda assim nem precisava tanto...

Um abraço do,

Victor.

30 de abril de 2019.

Daniel #3 - 07/05

Aquiles

Victão,

Te escrevo atropelando tudo porque ao ler seu e-mail sobre esse videogame colegial não consigo parar de pensar na minha escola – acho que nunca te levei lá – onde passei doze anos inteiros e seguidos e vivi tudo e que agora periga perder quase metade do orçamento numa dessas extravagantes jogadas de poder burocrático que brincam com a vida dos outros. tenho que escrever um texto sobre minha experiência lá e vomitei um monte de palavras de uma vez só, estou com uma vergonha danada de olhar de novo para elas, não sei se tem salvação, mas sabe esse é o mínimo que eu poderia fazer pelo meu colégio, por esse lugar que dá tanto e recebe uma ingratidão dessas, victor como é possível que eu não possa fazer mais do que umas frases? a gente já falou disso outras vezes, muitas outras vezes, do que faríamos quando a realidade viesse pinçando a nossa bolha, um dia isso tudo vai ficar insustentável e o que nós vamos fazer? escrever textos? bolar umas palavras para botar na rede social? li sua carta pela segunda vez, para responder, você sabe que sou demorado, e reli e fiquei pensando nesse colégio japonês mal-assombrado (o que você prefere, uma escola encapetada ou uma escola estrangulada?) e só consigo me lembrar das tardes que passei jogando videogame, fugindo da vida na rua. eu jogava muito victor, muito mesmo, assim como você eu imagino, e eventualmente cansei de ficar frustrado. você sabe que eu não sou competitivo, inclusive com videogames, mas com o passar dos anos eu sinto que na verdade eu tenho é medo de perder, medo de ser ruim, de não conseguir ganhar. que subi esse muro porque é muito confortável ver tudo daqui de cima onde o resultado não importa, onde um tapinha nas costas é conquista suficiente. imagina você que eu comecei a abandonar os jogos competitivos para civilizations e europa universalis e simcities da vida porque eu podia largar no meio quando ficava difícil? é a desistência mais fácil do mundo, você aperta um botão, abandona o jogo salvo e ninguém fica sabendo que você não é capaz de manter nem uma porra de uma cidadezinha virtual funcionando por mais do que 10 ou 20 horas ou que você usou um plugin para te dar dinheiro infinito. é um segredo só seu e da máquina. e o pior, Victor, eu fui levando isso para minha vida, desviando de tudo, guardando esses segredos da desistência, assim como eu desisti de aprender o francês ou o alemão ou a desenhar de verdade ou como eu deixei tantos relacionamentos irem se esvaindo porque eu abri mão, sabe? desisti mesmo, menti achando que outras coisas eram mais importantes, mas na semana seguinte sempre aparece algo mais importante e por aí vai. você sabe bem a quantidade de matérias que deixei de fazer por isso. às vezes não tenho cara de olhar para uns colegas que me incentivam tanto e dizer “é eu não fiz porque eu sou preguiçoso, mais do que isso, porque eu sou covarde”. victor, você acredita em mim se eu falar que estou tentando lidar com isso abertamente? está sendo difícil, mas na última sexta disse para três entrevistados que fazem um podcast que eu era um covarde, um medroso puro-sangue e eles riram, disseram “Ha Ha Ha que jeito engraçado de se apresentar” e eu não estava mentindo, eu nunca tinha falado tão sério na minha vida. porra, victor nem na honestidade me levam a sério, como é possível? e tudo volta para esse texto que tenho que escrever sobre o colégio. o que eu vou falar? se eu não for capaz de escrever um grande texto sobre isso, como eu vou me olhar no espelho? tô entre a cruz e a espada, victor. entre a covardice e a mediocridade. parece que tô sempre uma volta atrasado na escrita. vejo você, o val e o jan que escrevem muito, com tom próprio. eu leio vocês religiosamente há mais de ano e me encanto com essas vozes que conheço tão bem e vejo no papel e na fala. será que eu chego lá, victor? dá muita vontade de desistir, principalmente de desistir dessa coisa de jornalismo, que parece que estou fadado a ser um repórter medíocre, o que não é uma vergonha, não dá para ser incrível no que a gente quer, mas e aí, o que eu faço? vou ser o quê? se eu não entregar esse texto com algum vigor eu sinto que acabou, é fim da linha. caixa. finito. eu queria que a minha bruxa ficasse solta! queria pelo menos baixar o drummond nessa madrugada, escrever uma coisa linda, de arrancar suspiro, mas não é assim que funciona. escrita é estudo, é dedicação, é entrega e um covarde não se entrega porque isso requer coragem. quem mergulha de cabeça sabe que pode se espatifar na queda. eu queria ser que nem o otto, victor. queria entrar na escrita que nem o cachorro entra na igreja, porque a porta estava aberta. mas ele mentiu quando disse isso. porra de porta de igreja o caralho. escrever tá mais pra catequese, comunhão, crisma e seminário. eu já te contei que eu ficava brincando de briga na catequese? nunca consegui comungar direito, menti na cara dura pro padre que eu me arrependia das coisas. e tô aqui agora, nervoso, culpado - isso eu aprendi bem na igreja - incapaz e meio febril ouvindo a mesma música do stevie wonder desde que voltei de são paulo ontem. ele tá incrível nela, é aquela que o george michael fez um cover, “as” o nome. começa meio fofa, balada, mas sabe como é balada do stevie que são sempre a coisa mais linda do mundo. ele canta que vai amar a pessoa pra sempre, mesmo quando o sertão virar mar e o mar virar sertão, até o dia que eu seja você e você seja eu e até que a gente sonhe a vida e a vida vire um sonho. tem noção do que é isso? e ele depois começa a cantar meio agressivo, a banda vai descascando, tocando pra caralho, parece uma pregação e dá uma vontade danada de viver, o stevie cantando e tocando e tocando - ele tocava tudo, victor, tudo! - e o teclado e o baixo e a bateria e a voz parecem uma coisa só, é lindo, lindo. ele compôs essa música com 24 anos de idade. eu tenho 24 anos!!!! como é possível uma coisa dessas? eu já estou no quarto play seguido dessa música, parece que ela não tem começo e nem fim, parece que o mundo gira em torno da voz do stevie. que eu talvez consiga escrever algo que preste antes da vida virar sonho. será que essa premissa de persona 3 não é a vida depois da música do stevie? onde a vida virou sonho e sonhamos em viver? procura aí sobre esse tártaro, não é isso? não era lá que os mortos gregos passavam a eternidade imaginando a vida que levaram? onde desceu orfeu atrás de eurídice e por puro amor?  onde aquiles ficou implorando uma nova vida, sem glórias, mas uma nova vida? victor, será que os personagens de persona amam de um jeito desmedido desses? e sentem medo? pixels têm sentimentos? descobre e me conta, conta tudo. eu vou tentar parir esse texto, vou tentar não desistir de novo. amigo, eu queria tanto você aqui, pra falar disso, pra botar essas coisas para fora. espero que você esteja bem e que esse e-mail chegue até você logo. vou responder o resto todo amanhã de manhã, mas agora vou fumar um cigarro porque eu estou sozinho nessa cidade de doze milhões de pessoas e eu tenho cinco páginas de texto na minha frente aguardando que as pegue pela jugular. eu juro, juro que respondo o resto amanhã. vou sair dessa noite menos desistente, começando por aí.

um abraço muito apertado,

dani

Victor #4 – 11/05

Dungeon final

Dani,

Essa já é a terceira ou quarta vez que tento escrever essa merda de resposta e não consigo, mas agora vai. Eu não quero saber o que vai virar, se vai soar bem ou o caralho, apenas que vai sair, então se contente: sua carta é a coisa mais pesada que li esse ano e faz qualquer assunto que remeta à Persona 3 parecer perfumaria. Tenho pensado há dias numa forma de começar a resposta, mas nem as frases do Otto Lara, evocações de purgatórios gregos ou metáforas ruins sobre nossos 24 anos fariam efeito. Tentei e falhei, por isso peço licença pra começar do jeito mais gratuito possível: acabaram de consertar o poste em frente e agora minha rua, às quinze pras sete da noite, é a melhor coisa que a incandescência amarela já produziu.

Dani, sua ausência de parágrafos e maiúsculas é sufocante, uma dessas coisas que só parece ser de verdade numa carta angustiada. Nesse sincopado bizarro você bate em assuntos preciosos demais, quebradiços demais, e é claro que nenhum deles resiste. O que posso fazer é juntar os cacos e tentar não esquecer nenhum pra trás. Te irrita saber que vi P3P, ou ao menos essas discussões que vemos tendo por aqui, em quase tudo? Não é porque quero voltar com o assunto inicial dessa correspondência, não, juro, e apesar de você dizer que ia mandar outra carta depois, aí sim falando sobre Persona, não acho que nenhuma falaria mais que essa.

Parece que seu 2010, ensino médio e adolescência voltaram cobrando forte, mais especificamente 30% do orçamento destinados às instituições federais de educação. Enquanto eu chafurdava essas três coisas com personagens de olhos grandes e cabelos coloridos, sem pressão nenhuma e já passando das 160 horas - exatamente como fazia há nove anos - você tentava chafurdá-las pela ótica de agora, dos prazos e textos pra entregar. Fomos chamados pra mesma coisa por pontos opostos, mas será que chegamos no mesmo lugar? Não sei, mas sei que ambos falamos da mesma impotência quanto ao passado.

Talvez essa minha vontade de terminar Persona 3 seja a mesma que a sua de defender o Pedro II. As duas nos ligam ao ensino médio e parecem oferecer algum tipo de redenção, como se devêssemos fazer qualquer coisa por aqueles anos, como se a conta não tivesse fechado e agora, mais velhos, decididos e com alguma autonomia, pudéssemos acertar as beiradas pelo que aprendemos a fazer de lá pra cá: escrever textos. Acontece que ninguém disse que isso ia ser suficiente pra qualquer merda, seja pra satisfazer essa minha busca gamificada pelo tempo perdido ou salvar seu colégio. Sejamos sinceros, Dani, se em algum momento acreditamos que, aos 24, qualquer coisa que escrevêssemos ou fizéssemos teria a mínima relevância contra a "pinça da realidade", fomos nós mesmos que nos enganamos. Ninguém nunca mentiu pra gente.

Penso no Otto. Li quase tudo o que ele publicou e o que se publicou sobre ele, conversei com familiares e amigos, vi as cartas, as crônicas, o romance e os textos pessoais, obscuros. Contemplei a cara do Otto em dezenas de fotografias, ouvi a risada dele mais de uma vez sem querer, admirei sua disponibilidade de mulher de trottoir e me perguntei o que ele faria em várias situações. Não digo que o conheço, mas sei que ele era esse cara que "se reservava um grande futuro", como tá escrito numa das suas auto-etnografias - exatamente como achamos que aconteceria conosco desde o fim da adolescência. Se o Otto conseguiu chegar lá, com toda sua exímia especialidade em assuntos gerais (exatamente como a gente)? Apesar das pessoas poderem dizer que sim, inclusive nós dois, chuto que ele diria não. Não porque Otto Lara Resende não teve um grande futuro, mas porque, lá no fundo, nunca deixou de se torturar por isso. Se OLR entrou na tal igreja igual cachorro, "porque a porta estava aberta", esqueceram ele trancado sem querer depois que a missa acabou.

Dani, não vou conseguir te dar uma boa resposta sobre como lidar com essas desistências, covardias, descompromissos, Stevie Wonders e etc. Porra, você me faz trinta perguntas, todas as que estou me fazendo pelo menos desde 2010, todas de uma vez e quer que eu tenha a resposta? Eu, que só tava falando de um joguinho de videogame japonês? Eu, que estou longe do Rio de doze milhões de habitantes justamente porque não consegui respondê-las? Isso, sim, é covardia - talvez maior ainda que se comparar com o Stevie. O que um save morto pode ajudar nessa enxurrada de frustrações?

Talvez o mesmo que um save vivíssimo: nada. O que posso te dizer é que também aprendi a me frustrar pela desistência e que ela veio, justamente, por conta dos videogames. Se você me perguntar, não sei dizer por que não terminei Persona 3 há nove anos, mesmo que já tivesse passado dos 90% de jogo. Nada me impedia, eu não tinha "travado" em lugar nenhum, meus personagens tinham qualidade de sobra e eu já tinha jogado o suficiente pra mais 8 horas de jogo não fazerem diferença nenhuma. Mesmo assim, parei. Desisti. Igual o Bartebly, apenas achei melhor não, sem explicação aparente. Preguiça, covardia, falta de objetivo? Mas não era só um jogo, e não era pra ser divertido? O mesmo aconteceu com Final Fantasy VI antes de P3P, e até hoje tenho meu save na porta da dungeon final - pode ficar tranquilo que esse arquivo não vou reviver. O mesmo rolou com outros tantos RPGs que larguei depois de um tempo, porque quis, porque ia demorar, porque não achei que valia mais a pena, porque ninguém nunca ia perguntar.

Desistir de um jogo enorme, mesmo no finalzinho, sempre foi um alívio e apenas fácil demais. A gente cresceu desistindo desses joguinhos, apertando ESC, arranjando outra coisa, outro jogo, outro save, vamos falar a verdade. Quem sabe, forçando a barra, talvez a gente possa até culpar a tecnologia por esses atritos que você escreveu, vai saber. De todo jeito, não vou te dizer que é preciso continuar escrevendo textos sobre a importância do Pedro II, ir até o fim em pautas já esvaziadas, parar de falar que é covarde ou, finalmente, se imaginar um jornalista menos medíocre. Não vai ser eu, me desculpa. O que posso fazer é dizer que o jornalismo ou a simples tarefa de chegar até o final de um texto, seja o seu ou o desta carta, parece já ter a desistência como um fator naturalíssimo. Tenho a sensação de que todas as vezes que a gente começa uma nova partida de Street Fighter, uma matéria ou um texto qualquer, não pudéssemos garantir que vamos chegar até o fim, simplesmente porque nós dois não podemos garantir. Porque, sem motivo que eu conheça, decida parar quando só faltam mais cinco minutos pra acabar Persona 3.

Como o Otto e como você, já me reservei um grande futuro diversas vezes, todos eles muito conscientes de si mesmos e redondinhos, em que todos os jogos estão zerados. Você pode dizer que me acho especial a esse ponto porque, como você, mas não como o Otto, sou um millenial - a explicação mais sem graça. Eu diria que é porque botei na cabeça, com 13 anos, que podia chegar até o fim de jogos enormes. Como você, outra vez, eu também já desisti de muita coisa e do jornalismo ao menos umas dezenas de vezes. Mas ultimamente, digo que meu último xodó nesse assunto é, justamente, desistir de pensar nesse futuro do jeito que OLR e nós mesmos pensávamos. Sua carta veio na hora certa. E você não está volta nenhuma atrás de ninguém, porque nem eu, Val e Jan teríamos tempo de terminar a primeira volta, mesmo se isso fosse uma corrida.

Sobre o tártaro, é esse lugar aí que você disse, sim. Eu tinha anotado uma porrada de coisas pra falar sobre as minhas últimas sessões de P3P, mas agora não importa, você atropelou tudo e foi direto na ferida, só vou dizer que me adiantei bastante no jogo e a próxima carta deve ser a última. Pensei nessa correspondência só pra chegar nisso tudo o que você disse sem ponto final ou parágrafo, não exatamente desse jeito, mas no mesmo lugar, e inconscientemente, mas você fez o favor estragar tudo. Não podia ter sido melhor.

Um abraço,

Victor.

11 de maio de 2019.

Daniel #4 – 22/05

Dale Cooper

Victão,

São onze dias desde que você me enviou sua resposta. Onze dias em que não soube bem o que te falar, como voltar ao normal. Onze dias em que muita coisa aconteceu e, por isso, me permiti engavetar essa resposta no fundo da cabeça, fingindo que era só questão de tempo te escrever. Nunca é.

Espero que o poste esteja iluminando as suas noites catalanas.

Sinto que nossa resistência conjunta em abrir mão de certos símbolos do fim da adolescência não seja coincidência. Por mais que o capitalismo, nossas famílias ou as instituições nos preservassem, agora não temos como fugir do simples fato de que somos adultos. Não existe mais escola, faculdade ou estágio. Perdemos qualquer objetivo de longo prazo que nos tenha sido dado; agora somos nós quem devemos decidir o que será do nosso futuro. Não sei você, amigo, mas eu não me sinto de todo preparado para isso. Tenho levado os últimos anos como se não houvesse amanhã — tá, sem exageros, como se não houvesse semana que vem. Não tenho projetos de médio-prazo, objetivos que gostaria de conquistar tão cedo, enfim, nada que me 'force' a sair de casa todo dia. Só o trabalho, mas esse é para um objetivo que talvez nunca venha, mesmo, nossa aposentadoria.

Enfim, esse preambulo todo para dizer que isso deve explicar nossa saudade do ensino médio. Eram tempos em que o objetivo era muito claro: passar de ano. Se formar. Tentar entrar na faculdade. Diferente da infância, já eramos quem somos hoje, e batendo às portas de um mundo de descobertas. E, ao contrário da faculdade, onde ainda vivíamos esse processo, na escola o tempo livre era considerável.

Como você bem sabe, eu também me reservei um grande futuro. Mas tenho mudado e me espelhado mais no Otto — e não me importa se ele concorda com essa minha ideia dele ou não! Eu não quero um grande futuro. Quero é morrer com duas coisas: amigos e uma fama de bom batedor de papo. Se mais nada, quero crer que minha vida tem enveredado por esses caminhos, e sinto que posso seguir neles. No fundo, o futuro brilhante vai remoer minha cabeça até o dia em que eu não for mais. Tudo bem.

Vamos nos prometer não desistir mais dos jogos?

Vi sua foto no whatsapp: você zerou Persona? O quê acontece? Que capeta você invocou? Quem daqueles estudantes pixelados teve final feliz? Eles têm planos para o futuro?

Como todo bom millennial, fui na Wiki de Persona dar uma fuçada em mais coisas do jogo. Não entendi muita coisa, admito, mas fiquei passeando pelas imagens. Quem é Elizabeth? Vi o nome dela, mas não no seu e-mail. Aliás, que nome bizarro é o do chefão "Hanged Man Arcana", e pose mais ainda. Não tenho certeza sequer se entendi a anatomia desse cara, então tento descrever para você: é um demônio fortão, preso como se fosse uma marionete e sempre na horizontal, e que no lugar da cara tem uma máscara branca meio sinistra? E que está preso a fios amarrados em dois anéis que parecem os que a gente coleta em Sonic, só que com asas? É isso, Victor?

Fuxiquei um pouco mais, e vi que o maior demônio que você pode invocar é o Messiah. Tá certo? Esse também é estranho demais, um loirão alto, com pernas em formato de rabo de caneta bic, um suporte enorme nas costas e vários caixões flutuando ao lado dele? Esse, admito, achei podre de chique. Apesar de um ser das trevas, ele é bastante elegante e poderia muito bem estar em uma passarela desfilando — depois de parar de andar por aí com uns caixões, claro.

Antes de ir, uma última dúvida: o que é esse "Quarto de Veludo" que vi aparecer várias vezes? Tem alguma coisa a ver com Twin Peaks? Seria demais. Imagino eu que o Persona tenha sido lançado depois das duas primeiras temporadas do seriado. Aliás, eu fiquei de cara outro dia ao saber que Twin Peaks fez muito sucesso no Japão. Era uma febre nos anos 90. E o pessoal ficou completamente desconcertado quando foi ver o filme e o final da segunda temporada, quando o David Lynch começa a aloprar mais na direção e as coisas fazem cada vez menos sentido de um ponto de vista narrativo. Pensando aqui, não duvido nada que os criadores de Persona sejam fãs do Lynch. Então refaço a pergunta: será que eles viram o comercial de café de máquina estrelado pelo Dale Cooper?

Me conta tudo, Victão. Quero saber. E muito obrigado pela sua resposta. Deus é testemunha de como eu andava precisando dela.

Um forte abraço e saudades,

Dani

Victor #5 – 24/05

'Fin'

Dani,

Zerei Persona há seis dias e já não lembro do final. Não sei se é culpa minha, mas sei que não ligo. Zerado esse jogo, não tenho dúvidas de que já foi a época em que fazia sentido me preocupar com o destino de adolescentes 3D de cabelo espetado, ainda mais quando o fim da história (em linhas gerais) é tão sem graça: vocês derrotam Nyx numa luta chatérrima, mas descobrem que a lua vai se colidir com a terra e todos morrerão do mesmo jeito, pelo menos até rolar uma batalha final entre você, sozinho, e uma última forma do bicho, tudo isso no núcleo do satélite - e adivinhe? pela "força da amizade", você vence. É isso, ou mais ou menos isso, porque já não lembro direito, e infelizmente esse será o fim do roteiro de P3P nesta correspondência - da qual esta carta também é a minha última. Aliás, você sabe me dizer como as correspondências normalmente terminam? Se como no zap, visualizado mas não respondido; se com pompa, com um cumprimento séc. XIX ("pouso minha pena em vossa honra, estimado companheiro"); se apenas com um "Fin", em francês, forçado e completamente sem motivo neste idioma, como aparece na última tela de Persona 3 Portable? Não faço ideia, já que nunca fiz isso oficialmente, mas sei que talvez mandar uma carta sem esperar resposta seja tão idiota quanto terminar um RPG sem ligar pra história, ou terminá-lo com uma palavra em francês.

Dani, essa correspondência já nasceu com prazo de validade, mais especificamente até que aqueles créditos, os que te mandei na foto, subissem embalados por um j-popzinho até razoável na tela do PSP. Uma das qualidades da série Persona é a trilha sonora, como já disse, e antes que o jogo chegue até os créditos em definitivo, você tem dois ou três dias de volta à escola, com a música do primeiro semestre, chamada exatamente "Time". Comecei a primeira carta dizendo que poucas coisas vinham quando pensava em 2010, e você perdoe, mas deu vontade de repeti-las nesta última: o gol não marcado do Lampard nas oitavas da Copa; o espaço de horas entre um amigo colocar um piercing na língua e tirá-lo por medo da mãe; o fato de camisa social e sapato virarem, do nada, artigos maneiros em festas de 15 anos; descobrir numa tarde que, no vestibular dali a dois anos, as respostas podiam vir em potências de 10, e ficar chocado por isso. Depois de zerar Persona 3 em exatamente 172 horas e 25 minutos, a mais longa campanha que já tive num videogame, também creio que poucas coisas vão vir quando pensar nesse jogo. O fim da história, por exemplo, não, mas aquele vocal e essa letrinha, ambos vigaristas, com certeza estarão entre elas: Time / Old dry winds go by / Lone air comes quietly / Time / Old dry winds go by / Uncertain space you need to fill in.

Você consegue imaginar melancolia mais genérica quanto a dessa música, que parece ser feita sob encomenda pra adolescentes levemente tristes no ensino médio oriental? Com acordes de piano, ecos, vocal feminino meio idol, aquela nostalgia exagerada por coisas que ainda nem passaram? Pois é, e mesmo assim não sei porque me rendia, ou ainda me rendo (?), a essas tranqueiras que pretendem surtos emotivos tão fortes, ou dramas tão intensos, a partir de produtos tão bobos e feitos 100% sob medida, em larga escala, do sertanejo universitário ao lo-fi hip hop. Talvez seja porque todos, assim como P3P, parecem lidar com um passado espectral que, aos 24, ainda rodeia os gestos e sussurra nos ouvidos. Um passado que não oferece trauma, não tem enormes problemas ou grandes acontecimentos, mas um passado comum - e ainda assim, um passado, o meu passado.

Depois que li sua carta, entrei no gamefaqs pra ver como se conseguia o Messiah. As respostas dos sempre-dispostos usuários vinha com uma frase de prefácio: "8 years ago". Em cinco minutos, liguei o PSP, subi um nível da minha Natsue Urahana e segui as instruções pra conseguir o bicho, que apesar de ser o mais forte com exceção de um outro - Orpheus Telos, que nem passou pela minha cabeça ir atrás - não me chamou assim a atenção, porque, afinal, o jogo já tinha acabado. Desliguei sem salvar. É mais ou menos a mesma coisa com a tal Elisabeth, um chefe opcional e o mais forte do jogo, que vai ter de se contentar em jamais ser derrotada por mim. Pra fechar o que perguntou, a Velvet Room é essa sala que aparece em todos os personas e é definida por seu habitante recorrente, Igor, como um "um lugar entre sonho e realidade, mente e matéria". Não vi Twin Peaks, mas imagino que deva ser inspirado, sim, na tal red room da série (que também consultei via wikia), bem como uma série de outras esquisitices do jogo. É nesse lugar que você cria os seus pokémons dos infernos, pelos quais a série é famosa a partir do design bizarro, como você notou e descreveu naquele chefe - e há bem piores, experimente por conta e risco pesquisar "mara persona" pra encontrar um caralho verde gigante, com nariz e boca, pilotando aquelas carroças romanas. Na Velvet Room, que só seu personagem acessa, você pode conseguir todos os personas, completar as quests pra liberar a luta contra Elisabeth e, enfim, platinar o jogo, todas  coisas que me importaria em atingir num RPG há nove anos, e que hoje não me importa mais. E por que mesmo?

Dani, te escrevo do meu quarto de adolescente. Na estante à minha frente tem um Link de tricô (presente da Isa); no guarda-roupa tem uma camiseta do Mega Man X (presente do Eduardo); no criado tem uns mangás em japonês (presente meu pra mim mesmo, e que obviamente nunca li). Todas essas coisas têm anos e ainda estão aqui guardadas, como era o caso do save morto no memory stick. Olhando pra elas, e terminando P3P, é impossível não pensar no que virei (viramos) desses anos pra cá, coisa que motivou essas cartas e até uma menção ao comercial de café estrelado por Dale Cooper, que os produtores de Persona certamente viram. Você diz que somos inegociavelmente adultos. Que não tem projetos a médio-longo prazo como antigamente. Que a ordem natural das etapas já não aponta pra metas tão óbvias quanto passar de ano e entrar na faculdade, e que flutuamos num eterno-presente, situação, aliás, que pode ser angustiante e aliviadora na mesma proporção. Acredito em você ao mesmo tempo que tenho dúvidas em todas essas coisas. Fiz desse último RPG, justamente, uma forma de desencaixar o passado pra ao menos roçar o que acontece agora, de forma a entender melhor em que ponto estou (estamos). Mais uma vez, acho que o Otto pode nos ajudar, como já vem te ajudando.

Diz ele num dos textos em que se perscruta, desconfio do "Quem é OLR?", que, quando criança e adolescente em São João del Rei, as coisas eram "claras demais, definidas demais". Não havia espaço pra dúvidas, exatamente como se espera de uma formação católica no interior de Minas em 1930. Sendo sincero, eu nunca esperei aprender muita coisa revisitando P3P, mas uma, sim, pareceu óbvia: que nada já parece tão claro como em 2010, a começar pelas etapas que devemos seguir, se o eterno-presente basta ou se vale a pena se reservar um grande futuro. O último, acho que podemos concordar que não, e graças ao Otto. Pensar se era melhor antes, quando vivíamos entorpecidos por qualquer expectativa mais longeva e 140 horas de P3P eram possíveis, ou agora, estando onde estamos, me fez chegar em outra certeza, mais uma vez auxiliada pelo Otto, de que "nostalgia é um cacoete de velho". Por mais que seja tentador, não quero pensar que agora as coisas são complicadas demais, que havia outro tempo melhor pra se viver, que poder terminar jogos enormes tinha qualquer coisa de especial, ou que sempre é hora pra saudar os velhos tempos. Precisei voltar nove anos no tempo pra entender que o presente, quem diria, é agora, e aí é melhor que não caibam nenhum "passado espectral" ou "grande futuro" - quem dirá outras 170 horas.

Fazia muito tempo que eu não zerava um RPG, Dani. Voltando a esse lugar, não posso deixar de dizer que o último, depois de tantos anos, traz a mesma sensação do primeiro. É sempre triste. Não porque não fiquei satisfeito, mas apenas porque durou tanto tempo e agora acabou. Principalmente, porque durou tempo além da conta, porque essas mais de cem horas, que poderiam ter sido usadas pra aprender a esculpir bonecos de madeira ou bater um açaí no ponto, foram usadas sem arrependimento pra grindar personagens além do que precisavam, pra combinar demônios virtuais que não interessam a ninguém, pra rolar diálogos e mais diálogos com os mesmos NPCs e pra fazer tudo isso, essencialmente, sozinho. Sem ninguém junto nessas 170 horas, sem uma alma viva do outro lado do mundo pra trocar uma ideia num modo online, sem mal comentar o que acabei de fazer nessas últimas duas horas de jogo. Em uma palavra, eu diria que aquilo que define os RPGs clássicos de console é o afastamento que provocam e a súbita consciência que tomamos dele apenas quando acaba. O alívio vem junto dum vazio salafrário, desses dos quais temos até vergonha. O resultado das duas coisas é a tristeza mais óbvia, a de que algo é triste porque acabou.

Dani, chegamos ao final e agora me pergunto: o que será do save morto? Aliás, quando zerei P3P, o jogo me ofereceu a possibilidade de salvar e começar um "new game+", o que fez meu arquivo ganhar um design novo. Se eu logar nesse save que zerei, o jogo começa do início, mas com os vários updates que tinha no jogo antigo, como level, equipamento, personas, etc. Ainda que consideremos esse "ressurgimento", me pergunto: o que será do save morto? Qual o destino e a utilidade de um save que nunca mais será logado? E deveríamos nós, que sempre consideramos nossos saves merecedores de respeito, nos preocupar com um fim digno pra eles? Tive um sinal disso, aparentemente. Imagine você que, antes de zerar, sonhei que meu save se corrompia e eu não conseguia chegar até o fim do jogo. Sinceramente, não consigo dizer se esse seria um final mais apropriado pra toda essa história. Pelo menos, aí sim, o save morreria completamente.

Me permite uma última pergunta horrorosa? Além do save morto, o que vai ser de nós e dos videogames, pelo menos nos próximos nove anos?

O fim da correspondência. Eu não descobri como faz pra acabar, então me deixe só dizer mais uma vez: muitas saudades.

Victor,

24 de maio de 2019.

Daniel #5 – 04/06

Cartada final

Victão,

Sei bem como é. Estou chegando na metade do novo Assassins Creed, umas 40 horas de jogo. Se passa na Grécia Antiga e é divertido, mas eu estou completamente desligado da narrativa principal. Acho que já se passaram umas dez horas desde que fiz alguma missão principal. Infelizmente o sarrafo das narrativas é muito baixo nos videogames. Aliás, olha que curioso: acabei de derrotar uma política corrupta que queria destruir Atenas em conluio com um culto estranho onde todo mundo usa máscaras e uns robes pretos. Sabe o nome dela? Nyx!

Desvio ultrapassado, impressionam os clichês: poder da amizade? meteoro apocalíptico? cabelos espetados? Fico achando até que você inventou essa mistureba aí, sabendo que é completamente verossímil. Victor, quantas mentiras a gente se conta só porque sabe que vão passar por verdade? Quando ainda estava na escola, eu tinha um amigo que mentia por qualquer coisa. Era um amor de pessoa, divertido e passamos muito tempo juntos. Mas ele mentia. E era por coisa patética, minúscula, inconsequente. Dizia que tinha almoçado ovo quando na verdade era frango; que viu uma reprise de Chaves no dia anterior que, na verdade, havia ido ao ar uma semana antes. Até hoje não entendo o que movia essas lorotas.

Esses finais de videogames expansivos, que por natureza não podem ser definitivos, me impressionam. Você acaba de salvar o mundo, que não é mais o mesmo, seu personagem também não, mas as limitações técnicas e orçamentárias dos desenvolvedores fazem com que tudo volte a ser exatamente como era antes, e nem um pouquinho diferente. Do contrário não poderíamos terminar as missões secundárias, colecionar as bugigangas que rendem troféus, ou tentar criar aquela armadura que não tivemos tempo antes. Causa espanto! Tudo que você fez até então parece ter sido um delírio, um futuro simulado que nunca chega — o protagonista de videogame se reserva um grande futuro, Victor!

Sobre a música, os versos têm um quê daquelas traduções capengas do japonês para o inglês, que passeiam entre o incompreensível e poético; como certas canções do Djavan que gosto tanto. Aliás, pensei numa letra de música igualmente brega, mas de uma banda muito boa:

And the time moves slow
When you came to the end
Running away is easy
It's the leaving that's hard

Ô, Victor. Como eu usei o gamefaqs, esses feitos de resistência e ociosidade humana, verdadeiros tours de force escritos em arial 11. Até hoje me pergunto quantas milhares de horas foram gastas na feitura de cada um deles. Qual será a sensação de terminar de escrever um troço desses? E o que pensam os gamefaquers (?) quando alguém lança um detonado melhor do que o deles? (Um rápido desvio: na televisão do trabalho tem um concurso de 'calouros' passando, e o atual competidor está soprando formas geométricas feitas de fumaça enquanto é julgado pela Fabiana Karla).

Você tocou num ponto que tem me assombrado. Não são raras as vezes em que me pego, como você, ligando o videogame para jogar um tiquinho e então desligar, sem mais nem menos, perdendo o progresso que fiz. Será que deixei de me importar com os números por trás dos gráficos? Não tenho mais vontade de ver a porcentagem crescendo toda vez que salvo a partida?

Voltar a ocupar o quarto da adolescência, ainda intocado, deve ser desnorteante. Como sempre morei no mesmo lugar, o cômodo em que habito mudou conforme eu mudei. Claro, tenho tralhas e tesouros de outras épocas, mas que dividem espaço com o acabou de chegar. São resignificados. Aí, não. Um Victor do passado, ousaria dizer que um fantasma, habita o seu quarto catalano. Você interage com ele?

Acho que a clareza das coisas existe para se apagar, mesmo. Foi essencial para nos entendermos, um tutorial de vida, para usar um vocabulário gamer, mas a diversão só começa depois. Agora é o vale-tudo, Victão. E que graça teria se vivêssemos como se houvesse um detonado para o futuro? Imagina só, que tristeza, se alguém criar um gamefaqs para a vida.

Um abraço carinhoso do seu parceiro de wrestling, cartas e jogatinas,

Daniel